sábado, 17 de setembro de 2016

A poesia como uma ferramenta de investigação do mundo


Praticamente desconhecida dos brasileiros até o lançamento de “Poemas”, em 2011, a polonesa Wislawa Szymborska rapidamente amealhou um significativo fã-clube. Prêmio Nobel de Literatura em 1996, ela tem um estilo peculiar, uma forma muito particular de usar a poesia como ferramenta de investigação do mundo. Falando diretamente ao leitor, a quem trata como um igual, sua linguagem é simples e próxima da prosa, e embora seus temas sejam muito variados, todos são como que irmanados pelo olhar da poeta, que combina o tom aparentemente informal ao rigor na construção dos versos. 

Escritos entre 1957 e 2012, em sua maioria desprovidos de qualquer adorno, os 85 poemas reunidos em “Um amor feliz” (Companhia das Letras, tradução de Regina Przybycien, 324 pgs. R$ 44,90) reforçam essa impressão de uma autora que incorpora à poesia não exatamente um método científico, mas a inquietação dos cientistas. Muitos poemas partem de uma indagação: uma vez apresentado o problema, verso após verso Szymborska o estuda e descama, até chegar, de forma geralmente inesperada, ao seu núcleo ou solução, que apontam para algum detalhe inusitado da natureza ou algum aspecto assombroso da vida cotidiana. O mesmo procedimento de observação e análise é aplicado a diferentes assuntos, da biologia à História contemporânea, da mitologia greco-romana ao significado do tempo e da memória, das relações afetivas a questões estritamente literárias, da incomunicabilidade entre seres humanos (ou entre seres e coisas) à indiferença do universo diante de nossos pequenos dramas e conflitos.

Capa do livro da polonesa Wislawa SzymborskaEm edição bilíngue, “Um amor feliz” também traz o discurso feito pela escritora ao receber o Nobel, no qual ela fala sobre o ofício do poeta: “O poeta, se é um poeta de verdade, deve repetir constantemente para si mesmo: ‘Não sei’. Cada poema seu é uma tentativa de resposta, mas, assim que ele coloca o ponto final, já o espreita a dúvida, já começa a se dar conta de que aquela é uma resposta temporária e totalmente insuficiente. E assim tenta mais uma vez, e mais outra, e depois os historiadores da literatura juntam com um grande clipe essas sucessivas provas de sua insatisfação consigo mesmo e as chamam de sua obra.”

Nascida em 1923, Szymborska passou a juventude sob um regime comunista, que apoiou nas décadas de 40 e 50, aderindo inclusive às premissas do realismo socialista. Até 1966 foi membro do Partido. A maturidade trouxe a desilusão com as consequências práticas do socialismo real em seu país, e aos poucos sua poesia se afastou, sem trauma nem alarde, de qualquer conteúdo político, ao mesmo tempo em que incorporava um senso de humor e uma ironia muito particulares. Em 1975 assinou a “Carta dos 59”, na qual os principais intelectuais da Polónia protestaram contra a submissão à União Soviética. 

Subvertendo convicções arraigadas, os poemas de Wislawa Szymborska buscam sempre uma compreensão alternativa das coisas, estabelecendo uma lógica e uma ética próprias. Outro aspecto de sua obra a ser destacado é o caráter narrativo de alguns poemas, com cenários, personagens e ação dramática (como em “Acontecimento” e “Medo do palco”). Avessa a badalações, grupelhos e eventos literários, Szymborska morou a vida inteira na Cracóvia, onde escreveu durante décadas numa revista literária. Morreu em 2012, aos 88 anos. 

Em um dos melhores poemas de “Um amor feliz”, Szymborska estabelece um diálogo com seu duplo para interrogar sua identidade e sua relação com o passado: “Adolescente” narra o seu encontro consigo mesma mais jovem, o que lhe permite observar como as duas são diferentes em seus gostos, convicções, interesses e até mesmo na escrita; as duas, contudo, têm algo em comum: o cachecol tricotado pela mãe – sinal de um laço profundo que a passagem do tempo não desfez. O poema termina assim:

          “Na despedida, nada: um sorriso casual
          E nenhuma emoção.

          Só quando some 
          e na pressa esquece o cachecol.

          Um cachecol de pura lã,
          Com listras coloridas,

         Tricotado à mão para ela
          Pela nossa mãe.

          Eu o guardo ainda.”








Fonte: G1
Link: http://g1.globo.com/pop-arte/blog/maquina-de-escrever/post/poesia-como-uma-ferramenta-de-investigacao-do-mundo.html